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Apagão




Pouco mais de quatro horas passaram desde que a luz se apagara abruptamente e cessara de jorrar água das torneiras. À porta do Lidl serpenteava uma fila engrossada por gente ansiosa, horrorizada com as prateleiras vazias, caixotes revirados espalhados pelo corredor, escassez do essencial. Os que saíam carregavam garrafas de água, sacos de batata frita e papel higiénico - sinal inequívoco de paranóia colectiva.

Circulavam noticias alarmantes de um Apagão geral na Europa. Acumulavam-se as mais rocambolescas teorias: ataques cibernéticos, acto de guerra, profecias apocalípticas, um teste para o que aí virá. Já não nos contentamos com a paz singela do quotidiano, a dopamina colectiva é voraz de catástrofe.

Uma excitação macabra com o cheiro a fim do mundo instalava-se numa rua abrasada por um dia de calor tórrido, onde circulava uma quantidade invulgar de gente, desconhecidos conversavam, avançavam com explicação," tanta tecnologia, e olhe, basta faltar a luz!...", enchiam-se as esplanadas, contrastando a contemplação de uns com o sobressalto de outros.

Muitos congratularam-se com esta experiência colectiva de cessação momentânea da anomia digital, com este vislumbrar de um passado virtuoso pré-telemóveis em que todos cantavam de mão dada em redor das árvores, dançavam nas clareiras, escreviam poemas. Mais dois dias sem electricidade e água, e reinaria a bagunça.

Ao fim de dez horas apagou-se o Apagão. Voltou a luz, já não se vê as estrelas. Iluminou-se a cidade, mas apagou-se o céu.

O fim do fim do mundo é sempre uma decepção.

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